(...)
Acordei com a cabeça a latejar ao som do relógio. Conseguia ouvir o tic tac perfeito! Um som, praticamente inaudível pela maioria das pessoas. Mas ele fazia tic e depois tac, muito alto. E fazia explodir a minha cabeça. Coloquei-o debaixo do colchão. Range. Algo range e arrasta algo muito vagarosamente. Com passos curtos a pessoa larga o arrasto, oiço um som seco. Deixam cair a carga, e uma quantidade interminável de portas começam agora a abrir e a fechar. Abrir e fechar. Agua pelos canos. Agora decidiram tomar banho. Perfeito, consigo ouvir a água a percorrer os canos todos daquela casa. Era como se fosse oca. Oca! Mas mantinha todos os elementos da casa de uma certa forma, conectados! Interligados à força, visto que até o autoclismo era audível. O meu companheiro de quarto abre a persiana, aqueles primeiros lasers de luz quase que me matam. Respiro para não matar ninguém. Expiro para não maltratar ninguém. Ele adora fazer barulho de manhã. E cumprir de forma devota toda a sua rotina diária. O que significa que para mim acabou-se o sono. Levanto a cabeça com brusquidão a ver se as ideias começam a surgir. Nada. Apenas observo as coisas ao meu redor à espera que algo aconteça. Como se nunca estivesse estado ali. Coloco-me de cócoras e preparo-me para cumprir a minha rotina matinal também. Ainda sem acender o cigarro a Dona Sarah já me está a trazer o café. Diz-me que estou atrasado. Fala-me do tempo, e pergunta amavelmente se venho jantar. Deixa-me em cima da cama alguma roupa limpa, mas toda amarrotada, pousa a tigela de café próxima do rádio. Eu fico a observá-la. Os seus gestos são amáveis assim como a sua figura. Uma sensação quente de conforto preenche-me e sensação de insónia desaparece. Digo que sim a tudo, dou o primeiro trago no café e a primeira puxa. O João auto pulveriza-se de perfume, e começa o ritual em frente ao espelho. Ele tem sempre tudo cuidadosamente arrumado e funcional. Começa a largar uns latidos sobre uma coisa qualquer, que tinha a haver com fumo, e não sei quê… Estava demasiado ocupado a fumar para ouvir o que ele disse. Quando ele parte finalmente todo sorridente, para a cozinha posso ouvir as conversas intermináveis que ele tem com a Sarah. Ou melhor, as conversas intermináveis dele, ao estilo monólogo! Mas lá sempre se acaba por ouvir umas palavras de Sarah a terminarem uma por outra frase dele… para dar um certo clima ao monólogo do rapaz.
Dou comigo a comer uns cereais ensopados em leite e com os olhos verdes da Dona Sarah fixados em mim. Sorrio. Não digo nada. Os meus pensamentos ainda não estão correctamente organizados. Fico vidrado por uns momentos no televisor. Nos programas infantis. Sem pensar. A Dona Sarah desaparece. O João bate a porta. Sossego. A casa emadeirada, começa então a esvaziar-se. Os rapazes e as raparigas foram estudar e trabalhar. E eu tenho de decidir o que vou fazer. Observo o silêncio na cozinha. É genuíno. Não existe espaço para nada em cima dos balcões. A escuridão transmite-me que o dia é chuvoso. Perco a vontade de ir seja lá onde for. Quero ficar ali. Adormecido. Embevecido com o conforto da casa de madeira oca. Aquelas paredes guardam conversas de todos os tipos e tamanhos. Contas as histórias que eu quero sentir.
Então que oiço as teclas do piano. Nervosas. Muito nervosas. Rápidas e barulhentas. Eu percebo a inquietação de Sarah. Uma sonata de Beethoven. Daquelas nervosas. Em que os dedos parecem confundir-se uns com os outros de tanta pressa. E as mãos empurram as teclas ora com brutalidade ora com suavidade. Mas com muita pressa. Feliz de quem procura a expressão. A Dona Sarah sempre está mais nervosa à segunda-feira, e depois fica ali duas, três horas a pensar sabe se lá no quê. Ela não me diz. Mas eu acho que ela podia ter sido famosa. Porque aquele Beethoven que eu ouvia… Aquela vontade toda fluía por entre os corredores velhos, e ouvia-se pelas entranhas todas da casa. A raiva e o amor. O ódio e a compaixão. Era como se os dedos de Sarah tivessem viajado por toda a Europa durante a segunda grande guerra mundial. E os ecos dos pianistas de leste ainda se ouvissem nestas paredes de madeira velha e escura. Madeira reluzente de vidas alheias. A mestria de um artista não se mede só pela sua qualidade de execução da peça. Mas pelo seu propósito. Pela paixão. Pela verdade da sua vontade. E a Sarah expelia sentido quando tocava. Não me quero sair da casa. Daquela casa atulhada de tudo. Onde o desejo reside, e as peças são tocadas para ninguém. As peças são tocadas para fervilhar o sangue nas veias e bombeá-lo com o nervoso miudinho para o coração. A Sarah sabe que estou ali e que a minha presença é reconfortante para o mundo dos mortos e das almas sem poiso. Não julgo a indecência e loucura e prazer e desejo e ignorância de ninguém. Por isso aquelas paredes respeitam me, e os dedos da Sarah perdem-se na sua própria magia… A magia do coração de um artista. Sem ganância. Sem mérito. Sem proveito. Sem propagandas. Sem elogios. Sem nada… Ali sozinha, envolta de filmes e livros, de retratos de pessoas que por aqui passaram e jamais voltarão. Sem julgamentos inoportunos. Sem motivo aparente… Fico ali. Estarrecido. Vivo e quieto. Sossego…
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