quarta-feira, 6 de abril de 2011

Ilusao

"Vejo-o como se tudo perdesse interesse. Recordo-o como se estivesse mesmo lá. Meus tempos. Quando as guitarras eram calmas e minuciosamente bem tocadas.... Ouvindo-se umas poucas notas sossegadamente bem tocadas. Os pensamentos mesmo que renegados, insistem em voltar, e eu deixo-os entrar. Fluir em mim. Era tudo naquela casa negra. Naqueles terrenos cheios de diferentes verdes. Os terrenos da família Japonesa. Eu era sempre recebido a cavalo. Eu ia de cavalo. E atravessava contigo aqueles campos aos trambolhões em cima do coitado do animal, de tão desajeitado que sou. E que viagem era! Enorme, mas lá o meu traseiro se habituava à dor, tinha de manter a postura á tua beira. Jamais fraquejar! Jovem e burro. Mas sempre lá estava a aldeola. Num vale. Cheio de barracas de madeira e casas de madeira. E cestos de madeira. Brinquedos de madeira. Ferramentas de madeira. Enfim.... Tudo muito artesanal. Menos a alma. Ui, a alma deles. Era como se eu passasse de um mundo de zombies para um mundo humano. Não que achasse que conseguisse ali sobreviver muito tempo, mas o que é certo…. A alma deles foi algo que trouxe e sempre estará comigo. Saya. Eu era jornalista e jovem, e burro. Não via as coisas mais simples baterem de frente com os meus olhos.


Ali chegava apenas um sinal fraco para a televisão e redes telefónicas! Bah, segundo eles, nunca foi necessário! Então lá tinha eu que tratar incansavelmente do meu mundo electrónico antes de me refugiar naquela ilha japonesa. Manter tudo actualizado e até tentava soltar umas previsões ridículas ao meu editor e ao meu director da revista, mas só assim eles e eu, conseguíamos superar o meu apagão dos dias seguintes. Eram sempre muitos dias de apagão. E lá ficava aqueles dias contigo e com eles sem hesitar. Aqueles dias que lá ficava contigo e com os teus. Jovem e burro. Que dias bons eram esses. Valores humanos. Confiança e devoção. Obediência e calma. Integridade e honra. Lá aprendíamos a cuidar das almas... Eu passava os dias a jogar futebol com os miúdos e outros jogos estranhos que lá eles me obrigavam a aprender. Ela passava os dias a tratar dos animais e dos miúdos. A mãe e o pai trabalhavam nos campos, e os tios e avós e sei lá quem mais. E era tudo uma enorme repartição de tarefas muito bem concebida naquela pequena vila com apenas duas famílias os Katsymoro, a família de Saya e os Sukutayo...


Mais fantástico ainda que tudo, eram os teus cabelos. Que te desciam pelo rosto. E tu deixavas. Longos. Que longos eram. Nos inícios sentava-me à tua beira e eu ficava a ver a tua boca a soltar palavras. Não sei o que dizias. Mas adorava ver o movimento lento dos teus lábios. A textura da tua pele. Tua pele era... Era a tua beleza tão incomum e tão tua! Assim só podia ser concebida muito longe das nossas sociedades modernas enraizadas de maus vícios e sobrevalorização das coisas... Os teus olhos mostravam a verdade que navegava na tua alma. Não olhavas à confiança, mas olhavas me porque querias confiar. E passei assim os melhores dias de sempre. Com um espectro feminino dos mais perfeitos que um estúpido rapaz de 23 anos poderia ver em tão curta vida. Á noite, no teu alpendre tomávamos um chá de umas ervas manhosas. Eu fala-te das coisas absurdas da sociedade moderna, e tu lembravas me sempre que a televisão da sala funcionava muito bem. Mas sempre a surpreendia com qualquer disparate... Fumava sempre dois cigarros, enquanto observava o queixo dela a recostar-se no peito... E aqueles olhos. Os teus olhos. Tão rasgados. Puros. Negros da cor do carvão. Como o teu cabelo. Negra de pele branca.


Meus amigos, dois conhecidos, três colegas e um familiar perguntavam-me uma vez por outra o que andava ali a fazer tanto tempo sem dar sinal de vida. Deixavam-me um mail, que só lia quando íamos à cidade aos fins de semanas, uma vez por mês. Que nem há uns 100 anos atrás. Era agradável. Mas como precisávamos de quase um dia inteiro para lá chegar e ainda tínhamos de ficar alojados em qualquer sítio que estivesse disponível à calha no centro da ilha de Shikoku, era uma viagem cansativa e dispendiosa.


Mas enquanto eles lá vendiam as suas coisas que brotam da terra de nomes muito exóticos, eu bloqueava-me no quarto enfiado no laptop o dia quase inteiro nas actualizações necessárias ao mundo exterior. Não porque precisasse de o fazer, mas porque o tinha. Dizia que estava vivo ao mundo finalmente. E enviava alguns relatos sobre a minha experiência. Mas não podia falar de ti… Nem… então o que lhes dizia?! Qual era o sentido daquela reportagem?! Dediquei-me a um documentário. Sobre os valores humanos quase extintos e a dependência que a sociedade nos causa, como que um vírus imune. E mentia ao meu director. Como quem sabe mentir profissionalmente. Mas eu só queria falar do som do vento quando chocava no teu rosto. Dos teus vestidos brancos, que quando ao Sol, conseguia ver as linhas perfeitas do teu corpo. Queria falar do calor dos abraços dos miúdos que me esmagavam o pescoço cada vez que um se deitava. Quem não sente. Não vive. Então para quê divulgar mais uma história banal!? Como explicar aquele calor terno se nunca vai perdurar!? Eu sabia que meses depois estaria tudo no mesmo lugar. O meu quarto branco. O meu café cheio. O meu pão seco. A minha pasta e o laptop. O meu carro. A minha estrada. As habituais escadas. O habitual escritório. Ouvir o meu nome trinta vezes por dia. Depois as habituais histórias sem intensidade. Mais um café. Umas piadas com as colegas atraentes e um cigarro. Trabalho desnecessário. Coscuvilhices. Mortes, dramas. O meu carro. A minha cerveja e os meus textos. Escrever. Divagar. E por fim, Rui e copos, e mais amigos, e miudas, conversas interessantes, piadas irrelevantes. Isto semanas atrás de semanas e mais semanas… Anos talvez… Quem sabe!"

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